quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Tecendo a inteligência na escola


“Estendo a linha. Faço um laguinho. Fisgo o peixe. Prendo. Estendo novamente a linha.”

Cena de pescaria? Não, cena de uma aula de trabalhos manuais em uma escola Waldorf.
A história de uma pescaria funciona como narrativa que dá vida à aula. A partir dela, a linha de algodão nas mãozinhas das crianças ora vira lago, ora vira peixe, e um cordão colorido vai se trançando.

Aula de trabalhos manuais pode parecer coisa dos tempos da vovó, ou melhor, da bisavó... Ao participar de uma dessas aulas na Escola de Pais, forma-se em mim uma convicção: isso é coisa para o século XXI!

Mas o que uma criança aprende ao ter aulas de trabalhos manuais na escola? 

Algumas respostas surgem rápido. Coordenação motora. Persistência. Atenção. Senso estético. 

Sim, é tudo isso, mas é muito mais do que isso. As aulas de trabalhos manuais nas escolas Waldorf têm uma sólida fundamentação na qual se articulam o pensar, o sentir, o querer e o agir. 

Porém, vou me deter aqui em um aspecto em especial, que senti intensamente enquanto tecia meu “cordão de São Francisco”: ao fazerem tricô, crochê e outros trabalhos manuais, tudo isso orientado com claros critérios pedagógicos, as crianças desenvolvem sua inteligência. E de uma forma profundamente adequada às tão propaladas “exigências do século XXI”.

Falo da inteligência como capacidade de relacionar-se no/com o ambiente, resolvendo problemas e enfrentando obstáculos, de modo criativo e flexível, por meio do pensamento, da ação, da vontade e da emoção. 

Ao conseguir criar um ritmo para tecer meu cordão, eu parecia sentir concretamente um comando lógico que não se realizava pela via das palavras e do raciocínio abstrato, mas a partir de uma rede de conexões que ligava, em movimentos co-ordenados, mãos, olhos, cérebro e sabe-se lá quantos órgãos mais. Eu bem que tentava comandar minhas mãos por meio de minha inteligência lógica e verbal, bem treinada em anos e anos de escolaridade tradicional: “primeiro isso”, “agora aquilo”, repetia para mim mesma. Mas sentia que o trabalho só fluía de verdade quando eu me entregava a um outro tipo de inteligência – será que poderíamos chamar de “inteligência do movimento?” - mais intuitiva, mais integrada e integradora.

Fala-se muito hoje, no campo educacional, das novas necessidades de aprendizagem para o século XXI. Fala-se em pensamento flexível, holístico. Fala-se em inteligências múltiplas. Fala-se em educação integral. Mas a aposta da maioria das escolas continua concentrada em aulas teóricas, exercícios escritos, abstrações, formalizações, intelectualismo, tudo isso de forma cada vez mais precoce. 

Evidentemente, o pensar lógico, abstrato, conceitual, é uma das metas de longo prazo na educação de uma criança. Mas o caminho para chegar a ele não pressupõe abstrações e conceitualizações desde o início. A criança precisa vivenciar concretamente o mundo, a fim de que se criem condições para pensá-lo com uma inteligência de fato transformadora.

As vivências pedagogicamente orientadas de trabalhos manuais oportunizam uma experiência concreta na qual as habilidades manuais e mentais se desenvolvem de modo integrado, pela interiorização e coordenação de movimentos e ações – além de se integrar, também, as emoções e a vontade, presentes por se tratar de um processo de criação e de produção pessoal. Eu aposto nessa possibilidade de tecer a inteligência na escola.



Tânia F. Resende é pedagoga, doutora em Educação, mãe de dois alunos da Escola Miguel Arcanjo